Da primeira impressão que se tem ao ser apresentado a Leida Gabriel Batista, 60 anos completos em outubro, fica a imagem de uma vovó de antigamente, de coque nos cabelos e saia comprida. Faladeira, a velha senhora recita passagens inteiras da Bíblia. Sabe dizer de cor números dos capítulos e versículos. É difícil acreditar que essa pessoa seja a mesma Vovó do Pó, conhecida também como Baiana, ex-traficante de drogas que, sozinha, chegou a comandar oito bocas de fumo da Vila do Índio, na Região da Pampulha, em Venda Nova, e na Vila São José, em Ribeirão das Neves, na Grande Belo Horizonte.
Quando Leida assume o microfone, um ar de desprezo é percebido no público do Culto dos Resgatados, na Igreja Batista da Lagoinha, no bairro de mesmo nome, na capital. O que aquela velhota teria a dizer a jovens tatuados, olhos vidrados, bonés com a aba virada para trás, tentando sair do vício do crack? Em poucos minutos, porém, já está tudo dominado pela ex-Vovó do Pó. Entre cânticos e provérbios, Leida solta o verbo: “Não é lero-lero de Jesus, não! Já cachimbei maconha com pedra, com cinza, com tudo o quanto há. Passava três, quatro dias sem comer, escornada em cima de uma cama.”
Fascinado pelo testemunho, o público delira. Depois de se iniciar nas drogas aos 7 anos e começar a traficar aos 12, Leida Gabriel tem muito a contar. Nas décadas de 1970 e1980, antes da chegada do crack a BH, ela era uma das poucas mulheres a participar do lucrativo negócio de drogas, controlado por homens e adolescentes usados como aviõezinhos para repassar os produtos aos clientes. “Era a época da maconha, do haxixe, da cocaína. Não existia a maldita da pedra. Cheguei até a emprestar a cozinha da casa como laboratório (de refino da cocaína)”, revela.
Condenada por tráfico de entorpecentes, porte de armas, formação de quadrilha e tentativa de homicídio, Leida cumpriu pena na Penitenciária Feminina de Santana, em São Paulo. Não deve mais nada. Por onde anda, leva a tiracolo a Bíblia e uma pasta onde estão os registros de internação no Hospital Galba Velloso, em BH, e as fotos dos tempos de traficante (quando chegou a pesar menos de 50 quilos e a perder os cabelos). Exibe ainda o atestado de bons antecedentes, plastificado.
O documento serve como passaporte para a entrada em presídios como o Dutra Ladeira e a penitenciária de Neves, na Grande BH, onde ela ministra palestras de conscientização de duas a três vezes por semana. Experiente, Leida conversa de igual para igual com os detentos. “Digo a eles que Jesus não vai ficar parado esperando que larguem o treszoitão (revólver calibre 38). Explico que passarinho parado ou é estilingue ou é gaiola. E que com eles é a mesma coisa, ou morrem no tráfico ou vão para a cadeia. Peço para lembrar quantos colegas deles já desceram a sepultura enquanto eles estão seguros dentro da prisão. E termino citando João, capítulo 8, versículo 32: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.
Do mesmo jeito que veio, o dinheiro fácil do tráfico foi embora. Leida mora hoje em barracão alugado de três cômodos na Favela São José, em Neves. Paga R$ 250 por mês, quase a metade do benefício da aposentadoria especial de um salário mínimo, obtida por ser dependente de remédios controlados. Desde 1974, foi internada cinco vezes para desintoxicação no Galba. Da última vez, em 2001, segundo ela mesma conta, negaram-se a acreditar que Leida havia se convertido e abandonado a vida de traficante. “O médico que me acompanhava brincou comigo: “Meu Deus, agora ela enlouqueceu de vez. A Vovó do Pó virou Vovó de Deus?””, teria dito o doutor.
Segundo um delegado aposentado da ex-Divisão de Tóxicos, traficantes antigos, de 15, 20 anos atrás, foram presos ou tiveram seus bens tomados pela Justiça. Ele garante que se lembra da Baiana – morena e bem falante. Ela teria perdido um carro confiscado pela polícia com drogas em seu interior. Leida, porém, admite apenas ter “fritado” (para o crack) o barracão de cinco cômodos deixado como herança pelos pais. Recebe R$ 100 do templo evangélico e descola vez por outra o almoço nas casas das amigas da igreja.
ÁGUAS DO BATISMO “No passado, quando via essa mulher vagando pelo bairro, careca, feia, sem dentes, em vez de ter medo eu sentia compaixão”, conta a vizinha Elida Ismael dos Santos, de 71 anos, que, com o marido, o presbítero Antônio Vieira, oferecia café com leite e pão, além da leitura do trecho de Mateus, capítulo 11, versículo 28: “Vinde a mim vós que estais cansados e oprimidos, que eu vos aliviarei”. “Tinha pavor dos crentes, mas na hora em que mais precisei, só conseguia me lembrar da vizinha dizendo que Jesus tinha um plano para minha vida. Meus filhos tinham virado as costas para mim, meus netos tinham medo da avó, a Divisão de Tóxicos ameaçava dar uma batida no meu barraco. Eu estava sem saúde, igual a um defunto ambulante, sem ter para onde ir. Naquele dia, pela primeira vez dobrei meus joelhos no banheiro nos fundos da casa e chorei a noite inteira”, relembra Leida.
No dia seguinte, 2 de junho de 2000, ela tomou coragem para deixar as dependências da antiga Rua 18, que funcionava como ponto de droga, e seguiu em direção à igreja. Em 2002, desceu nas águas do batismo, como ela mesma diz, depois de enfrentar internações e recaídas. Há nove anos está totalmente limpa, depois de 44 anos de convívio com as drogas. “Sei de gente que me critica por aí. Questionam que depois de todas as maldades que fiz agora ando com a Bíblia embaixo do braço. Não devo mais nada para a Justiça e quem tem de me julgar é Deus. Só ele pode dizer se passei por essa experiência para que hoje pudesse ajudar a resgatar mais almas.”
NOME VERDADEIRO “Vovó do Pó, não! Baiana, não! De hoje em diante, exijo ser chamada por meu nome de batismo: Leida Gabriel Batista, a seu dispor”. Com esse apelo emocionado, a mulher encerra seu depoimento na Igreja Batista da Lagoinha. Está dado o recado. Ela agora quer ser só vovó. Quando um filho tinha seis meses e o outro dois anos, Leida partiu para São Paulo, voltando apenas quando os filhos tinham 13 e 12 anos. “O meu mais velho me chama de mãe e o mais novo de Leda. Eles ainda não deixam meus netos sozinhos comigo. De vez em quando, consigo fazer uma comidinha especial ou cortar o cabelo de um deles. Se eu soubesse antes que era tão bom andar assim…”
Comentários