Vale a pena conferir as histórias do canganço


 Lampião costumava escrever, por onde passava as seguintes palavras, que expressavam bem o sentimento religioso que nunca o abandonou: “Vancês deve se alembrá di Jesus, di Maria, di José o do meu padrinho, padre Ciso”.

     Foi em um dos seus dias de maior religiosidade, que o Rei do Cangaço encontrou a velha Donana. Donana vivia da caridade pública e passava, frequentemente, tremendas privações, quando o destino colocou-a diante de Lampião.

     – Me dá uma esmolinha, seu moço?…

     – Qui tá passando cum voismicê, minha véia? Tá sofrendo privação?

     – Oí seu moço, o sinhô num pode carculá u qui eu tô passando. Só mesmo a grande fé qui eu tenho em Jesus, Maria e José, e também no milagroso padre Cirso, é qui mi fáis ainda vive pru esses mundo di Cristo Nosso Sinhô…

     Lampião estava conquistado, A velha falara na Sagrada Família e no seu querido padrinho. Portanto o Rei do Cangaço estava na obrigação de, de acordo com os seus sentimentos religiosos, auxiliar a anciã em tudo o que ela necessitasse.

     – Minha véia, voismicê sabe cuzinhá, pro mode de fazê o dicumê de argumas pessoas?…

     – Cuzinhá eu sei, seu moço, mais num tenho mais força pro mode de soprá os lume…

     – Voismicê sabe lavá rôpa?…

     – Lavá eu sei inté muito bem, mais cadê força pru mode di isfregá ela?

     – E tumá conta de criança, voismicê sabe?…

     – Óia que eu inté tenho muita paciença prá oiá as criança, mais, si as criança corrê,   cumo é qui eu faço, pro mode de í atráis delas?…

     Lampião coçou a cabeça; passou a mão na sua barba rala, tossiu e prometeu:

     – Minha véia, eu vou pensa in arguma coisa pra voismicê. Agora, aceite esse dinheirinho pro mode di i passando inté eu lhe percurá…

     – Sim sinhô… E?… Se o senhor num si incomodá, cumo é u seu nome, moço?…

     – Eu me chamo Lampião.

     E com essas palavras, o Rei do Cangaço retirou-se. Dias depois, perto de Lagoa do Afonso aparecia uma espécie de tendinha com o pomposo título pintado em letras rústicas: “Birosca da Dona”. Por baixo, em letras menores, lia-se: “Vancês deve se alembrá di Jesus, di Maria, di José o do meu padrinho, padre Ciso”.

     Desde esse dia, Donana, a proprietária da birosca presenteada por Lampião, não passou mais privação. Mandou fazer diversas saias azuis e vermelhas e há até quem afirme que, remoçada por aquela vida mais folgada, a velha chegou a arranjar amores e aventuras pitorescas. Toda a vez que Lampião passava pela Bahia, visitava sua protegida na Lagoa do Afonso, e ficava satisfeito em ver que a velhinha estava progredindo.

     O Rei do Cangaço vivia, então, um dos momentos mais agitados de sua vida aventureira. Perseguido sem tréguas e abalado pela morte de dois de seus irmãos, vingava-se a torto e a direito, sacrificando muitas vidas em sua fúria sanguinária.

     Em Sergipe, Alagoas, na Bahia e por quase todo o Nordeste, o Rei do Cangaço era considerado o lobisomem de duas personalidades. O homem e a fera. Se o homem não raro praticava o bem, a fera exterminava sem piedade. E como ambos, homem e fera, habitavam o mesmo corpo, precisavam sacrificar o homem para que a fera sucumbisse. Então, a cabeça do herói foi dada a prêmio.

       Numa das visitas de Lampião à birosca de Donana, Patori, um cangaceiro que costumava acompanhar-lhe naquelas visitas, viu um sertanejo afastando-se furtivamente, depois de trocar algumas palavras em voz baixa com a velha. Patori chamou a atenção do Rei do Cangaço que, fingindo nada ver, entrou e sentou-se em uma das mesas e pediu aguardente e um prato de comida.

     – Donana, – disse depois de servido – o qui é qui tava fazendo aquele “macaco” aqui?…
     – Qui “macaco” Lampião? – falou a velha, meio desonfiada.
     – Aquele que saiu daqui quando eu cheguei – retrucou Lampião. – Voismicê num anda pensando má a meu respeito, anda, Donana?
     – Deus que me perdoe, Capitão, se eu pensei, arguma vêiz in lhi fazé má…
     – Intonce beba um poco de cachaça cumigo, pro mode de nóis continua bons amigos…
     E sem esperar resposta da velha, Lampião encheu uma caneca de aguardente e ofereceu à velha,
     – Não, Capitão, eu num gosto de pinga, num sinhô… Flou, apavorada, a velha Donana.
     – Cumu é qui não gosta, se voismicê tem bibido sempre cumigo, todas vez qui eu venho pur aqui?…
     – Mas é qui agora eu tô duente, Capitão…
     – Apois voismicê vai curá as doenças qui tem, bebendo agorinha mermo essa cachaça. Ô intão vai morrê mesmo é na ponta do meu punhá…
     E, num gesto brusco, Lampião arrancou o punhal da bainha e espetou na madeira engordurada da mesa. Donana ajoelhou-se implorando pela vida ao Rei do Cangaço. Mas Lampião, agarrando-a pelos cabelos obrigou-a a beber todo o conteúdo da caneca. A velha deu um grito pavoroso e caiu, estrebuchando.
     – Perdão Lampião – gritava nos estertores da morte. – Eu invenenei a cachaça pro mode de lhe mata… Mas num tinha raiva de voismicê não… Eu só quiria o dinheiro do prêmio, pro mode de fica rica… Eu… Ai!…
     – Vambora Paturi… Deixemo essa véia disgraçada pros “macaco” incontrá ela… Eles vão logo sabe qui mais um ingrato pagô o qui divia ao diabo… Vambora logo…
     O Rei do Cangaço partiu. Seu coração sofria mais porque, fazendo o bem, sempre encontrava quem não o merecia.
     Atrás, ficava o exemplo de Donana.


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Do Livro: “LAMPIÃO – Rei do Cangaço”, de 
autoria de Eduardo Barbosa – Editora 
Tecnoprint S.A. – Rio de Janeiro (RJ) 1985.

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