A agonia (que não veio) para renovar a CNH no Detran


Quando cheguei em casa ontem de noite, depois de uma rodada de sinuca com os amigos, encontrei no local onde normalmente guardo as correspondências, um envelope branco, de plástico.

Abri e vi que era a minha nova Carteira Nacional de Habilitação para os próximos 3 anos.

Por um erro de observação achei que a velha CNH venceria em setembro. Corri para renovar.

Foi engano.

Vence somente em novembro.

Porém, a decisão de renovar já estava em andamento.

Ao contrário da vez anterior, que renovei na Central do Cidadão do Via Direta, decidi ir ao Detran mesmo, aquele velho Detran lá da Cidade da Esperança.

Quem passa dos 65 anos, que é o meu caso, agora tem que renovar a habilitação a cada 3 anos.

Lá vou eu para lá, sem antes passar pela cabeça o sofrimento que me esperava, a demora, a indiferença cívica dos servidores, a natural lentidão da máquina pública, muitas vezes morosa a espera de algum adjutório, como diria Mãe Sinhá, minha avó.

Mas fui preparado, agoniado e consciente de que não seria fácil.

Até pensei acionar amigos, algum servidor conhecido, tentar na Assessoria de Imprensa do órgão, onde as chances de encontrar um ex-aluno são boas.

Tinha recursos disponíveis.

Enfim, usar do jeitinho para apressar a renovação, não perder tempo e nem a paciência. Iria atrapalhar o expediente, retardar o atendimento aos demais, desde que meu interesse fosse resolvido logo.

Por um capricho e comodidade.

No primeiro dia, por erro meu, não levei nem o dinheiro (R$ 104,00 para a renovação e o exame médico) e nem um documento original comprovante de residência.

O dinheiro foi fácil.

Num caixa rápido, sem fila nenhuma, retirei o necessário para pagar as despesas.

Já achei boa a surpresa.

Entre um bloco e outro  encontrei um amigo dos tempos do Atheneu,  servidor antigo do Detran, atencioso e gentil, que tentou, legitimamente e por deferência, uma declaração de um funcionário graduado para tornar desnecessária a apresentação do comprovante de residência.

Não foi permitido, mesmo com o carimbo de um funcionário.

A norma havia mudado e a nova determinação teria que ser cumprida.

Diante do impasse, criado por minha própria desatenção, decidi voltar outro dia.

Voltei com a munição total.

Desta vez, porém, optei por não pedir nenhum tipo de ajuda. Já sabia onde estacionar mais perto e para qual sala deveria me dirigir.

Queria testar o serviço que o Detran presta para um cidadão já na idade chamada de preferencial, embora aquele ícone do idoso nos estacionamentos mostrem o cabra no fim da vida, todo torto, de bengala na mão e quase sem poder se mover.

Os idosos deveriam processar por assédio moral quem inventou aquele símbolo.

Na cabeça do repórter as lembranças das antigas pautas que enlameavam o Detran.

Talvez já pensando mesmo neste artigo quase crônica.

Ou numa denúncia.

Encontraria resquícios pré-históricos do Detran cabide de emprego, servidor apadrinhado político, do derrame generoso de carteiras, da falsificação de quase tudo, da máfia na inspeção dos veículos, da dispensa das multas, do vendedor de placas dentro da repartição, do despachante suado, sabido, corruptor, do funcionário movido a um sonho de valsa ou a um corte de cetim?

Ou uma instituição que tenta mudar, que busca a sintonia com um novo Brasil eficiente, profissionalizando seus funcionários, optando por agir dentro da lei, que caminha na modernidade da CNH digital, das belas campanhas educativas?

Com a cabeça em plena velocidade comecei a ter surpresas.

Quase todas boas.

Embora houvesse uma fila maior ao lado, fui o segundo da fila do preferencial. A moça foi objetiva (comprovante original de residência e a velha CNH).

Saquei na hora.

Recebi e ficha e a orientação:

-por favor, tem uma fila de cadeiras ali na sala – e apontou -. O senhor é preferencial e espere lá que será chamado.

Sala lotada.

Lá fui me sentar, já pronto para ficar horas no celular e nas redes sociais. Até olhei se a bateria iria aguentar muito tempo.

Não demorou 5 minutos, chamam minha ficha.

Era minha vez.

Ôba, pensei.

Gentil e eficiente, a funcionária preencheu os dados rapidamente.

Apontou para algumas mesas ao lado e disse: vá ali tirar a foto para a nova carteira.

Quase nem me levanto da cadeira. É ao lado mesmo.

No local da foto, o primeiro contratempo.

A máquina não funcionou. Depois de três tentativas a própria funcionária, grávida, pediu ajuda ao colega vizinho.

Assim que concluiu o atendimento de outra pessoa, me chamou. Esta etapa também não demora 10 minutos.

Eu é que fiquei puxando papo com o funcionário, querendo saber quantos atendimentos faz por dia, se algumas providências não poderiam ser resolvidas pela tecnologia, quantas vezes as mulheres pedem para repetir a foto, produtora contumaz de monstros etc.

Mania de jornalista.

O funcionário me disse que o setor inteiro atende a aproximadamente 400 pessoas diariamente.

Enquanto batia papo com o funcionário percebi que as instalações físicas das salas por onde andei estão bem deterioradas.

Não há um só ar condicionado que não apresente vazamentos em tetos e paredes.

Em alguns locais há cheiro de mofo mesmo.

Também as cadeiras das salas de espera não são muito confortáveis.

Porém, pelo pouco tempo de demora, é suportável.

Feita a foto (notei que as câmeras e o cenário de fundo melhoraram um pouco). Fui ao banco, também no mesmo ambiente, paguei a taxa, fui bem atendido e de forma ágil, abri uma porta e fui para a sala de espera.

Faltava o exame médico da visão.

Aí eu tava tinindo.

Tinha feito cirurgia de catarata, miopia, astigmatismo e seria a primeira CNH depois de 53 anos usando óculos.

Novamente o procedimento foi satisfatório e a atenção das servidoras foi muito eficiente.

Preenchi uma pequena ficha com informações pessoais – do tipo se já fez alguma cirurgia, se bebe mais do que socialmente, se já sofreu algum acidente de trânsito etc – para ajudar o médico.

Este, por sua vez, também foi claro nas perguntas que ajudavam a esclarecer o modo de vida de quem estava tentando renovar sua carteira de habilitação e sair dirigindo pelas ruas loucas, do trânsito louco do país.

Fiquei imaginando as 400 vezes que o médico teria que fazer as mesmas perguntas e repetir o mesmo exame todo santo dia.

Deve ser muito chato.

Mas não percebi nenhum sintoma de mau humor ou desatenção, pressa ou falta de profissionalismo.

Levei cerca de uma hora e meia para renovar a carteira.

Ainda fui avisado que, se tivesse pressa, poderia esperar e receber a nova habilitação em 1 hora.

Ou então ela chegaria pelo correio em até 4 dias úteis.

Chegou ontem de tarde.

Dentro do prazo.

Parece que o Detran pré-histórico morreu.

Volto daqui a 3 anos.

Inté.

Por Ricardo Rosado

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