Natal: o supremo arquétipo da história

Natal e passagem de ano, a muitos, figuram como dois capítulos entrelaçados. Nada, porém, mais essencialmente distintos que ambos os epifenômenos.

Arquétipo, um símbolo, um signo, um acontecimento, um homem, uma conduta. Em verdade, todos eles, e outras manifestações, conjugados, em torno de um eixo de sentido sólido. Não é nenhuma dessas expressões, isoladamente consideradas. Arquétipo é um  anexado pedaço do mundo e um contínuo momento de significação da história.

O Natal é o supremo arquétipo porque transformou-nos. O povo judeu subjugado e no aguardo do Messias. Deus e César, o espírito e a matéria. O homem grego criara a filosofia. Suas hipóteses foram múltiplas, eram interrogações, no estilo que Sócrates imprimiu àquele momento cultural. Já a civilização romana foi simplesmente matéria. Seus melhores cérebros voaram longe; paradoxalmente, criou a ideia do justo, incorporada pelos juristas até hoje, e nenhuma  outra civilização promoveu, em tamanha extensão, de nativos e peregrinos, o injusto.

O injusto vinha de um centro de poder de poucos sobre todos os povos. Roma os submetera e adestrara. O imperialismo em sua essência nevrálgica. O Natal rompe abruptamente esse "ethos". Não à-toa a história registra o procedimento de Herodes. Mas o imperialismo seria driblado por uma santa tática de guerrilha. Assim começa o questionamento mais sério do domínio romano.

Este se aviltara e aviltara todos os povos do mundo. O antigo esplendor grego se fora. Roma não refletia, salvo sobre os domínios: o Senado e, no ótimo cultural, Cícero e alguns outros oradores talentosos. O mundo dominado não tinha nenhuma graça. Era a vidinha sobrevivida, sem nenhuma imaginação. Apenas o medo. E as primeiras grutas de resistência, onde planejava Barrabás a libertação.

O arquétipo prossegue. A madraçaria é rompida com a gravidez da virgem. Algo insólito, e tudo deveria ser insólito para o homem libertar-se daquele triste ramerrão, não só do Oriente e de Jerusalém. O imaterial havia de ser demonstrado por um anjo e uma pobre mulher.  A manjedoura deu um golpe jugular na cultura da riqueza. Situada onde dormiam e sonhavam, como irmãos, homens e os irracionais das cargas.

O arquétipo prossegue. Uma estrela, há muito desaparecida, ganha vida, para conduzir com presentes de nascimento três homens videntes vindos dos mais distantes rincões. O astro morto os guiou. Isso para que nem o senhor tempo limitasse o desígnio divino de transformar aquele povo e mundo, que não mais poderiam permanecer na triste indolência e no ceticismo entrópico.

O arquétipo prossegue, porque o imperioso espaço também é desafiado. Roma, à época, estava há "anos-luzes". E o fato político mais importante da história iria ocorrer na mais desimportante e árida periferia, fora dos olhos dos "imperadores-deuses". Desertos, florestas, rios, montes pedregosos, passaram a ser o sítio inesperado da revolução intelectual, religiosa, filosófica e material. Nesse momento foi lançado o gérmen da sucumbência do império, seu declínio e queda, séculos depois, narrados por Gibbon.

O homem simples assumiu seu lugar essencial nos acontecimentos, castas desapareceram, outros modos de escravidão surgiram, mas o fato é que o desenho da humanidade foi traçado por cores que nunca se apagaram desde o Natal. Seitas se deram a mutantes reflexões. O mundo novo e o novo homem começaram a despertar.

Aqui estamos, mais uma vez a comemorar o natal arquetípico, mais importante que as guerras, mesmo as atômicas, ao gerar a mais relevante mudança no espírito dos homens ocidentais e semelhanças espirituais nos mais distantes sítios orientais.

Por iniciativa dos homens, que trazem para aquém do verdadeiro real o que está muito além, comemoramos em conjunto a volta elíptica do planeta em torno do astro dominante. Alguns imaginam novas esperanças no ano novo, porém o arquétipo da transformação do caminho histórico é o Natal indescritível - talvez tenhamos outro, neste mundo de nossos viveres do século XXI, "mutatis mutandis", em que os relinchos tremidos dos amigos da humilde redoma da manjedoura foram substituídos por irrequietos sons de celulares.

Amadeu Garrido de Paula

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